Os preços das amarras nos nossos portos estão a subir rapidamente e os clubes náuticos estão a começar a perder a sua função social: ter um pequeno iate em Portugal está a tornar-se um luxo inatingível
Nos últimos anos, a gentrificação dos automóveis a nível global torna-se cada vez mais evidente, embora haja casos mais evidentes do que outros, como Singapura: onde o luxo não é um supercarro, mas um carro usado comum. O mesmo acontece com o mar, mas a uma velocidade enorme. Portugal é um bom exemplo disso.
A navegação social, ou seja, os amadores que têm um pequeno barco para navegar aos fins de semana, está a desaparecer gradualmente dos nossos portos, absorvida pelos grandes iates. Principalmente porque os preços das amarras subiram tanto que se tornaram um bem de luxo, acessível apenas a poucos.
Os protestos dos proprietários de embarcações em portos como Cartagena, Valência, Ibiza ou Carboneras são prova disso: hoje em dia, um lugar de amarração para uma embarcação modesta pode custar mais do que a própria embarcação. Em Ibiza, por exemplo, o lugar de amarração para uma embarcação de 9 metros passou de 7300 para 25 700 euros por ano.
Gentrificação do mar: quando os portos se transformam em resorts
A gentrificação chegou aos cais e, gradualmente, vemos os marinas transformarem-se em complexos luxuosos com restaurantes, salões exclusivos e serviços premium, enquanto desaparecem os espaços básicos necessários ao velejador médio.
«Só restará espaço para quem tem iates de luxo», resume Henrique, sócio de uma escola de vela. Na sua opinião, o amador comum só precisa de uma cerca de arame para proteger o seu barco e de uma mangueira para o lavar. Mas esse modelo não existe em Portugal: aqui, o padrão já é a marina de luxo.
O problema não reside apenas nos preços, mas também na acessibilidade. O engenheiro naval e consultor, na mesma entrevista, lembra que «o crescimento da população nas zonas costeiras provocou um grande interesse pela navegação, mas a oferta de ancoradouros não cresceu ao mesmo ritmo e, em muitos locais, já não pode crescer mais». O resultado são listas de espera intermináveis nos portos públicos e preços exorbitantes nos privados.
O desequilíbrio é especialmente grave na Grande Lisboa, onde a pressão turística e o afluxo de armadores estrangeiros, favorecido pela «liberdade de bandeira» desde 2010, levaram a um aumento exponencial da procura. Muitos residentes locais, proprietários de barcos modestos, não têm hoje em dia alternativa.
O modelo tradicional de clube náutico em Portugal está à beira da extinção
Historicamente, os clubes náuticos eram organizações sem fins lucrativos dedicadas à promoção da vela e dos desportos náuticos.
Mas, na realidade, muitos deles transformaram-se num modelo de serviços exclusivos para membros com elevados rendimentos. O presidente da Federação Portuguesa de Vela reconhece que existem clubes que não cumprem as suas funções sociais e desportivas: «Deve exigir-se-lhes um projeto desportivo anual e o investimento de parte das suas receitas no desenvolvimento da vela federativa».
Entretanto, os números falam por si: o número de licenças para a prática de vela em Portugal diminuiu de 50 000 antes da crise para menos de 20 000 em 2024.
A questão principal é o que entendemos por «vela social». Para o governo da Grande Lisboa, são iates com até 12 metros de comprimento. Para a administração portuária, apenas até 8 metros. E para muitos proprietários de embarcações, isso deve significar simplesmente que qualquer residente pode ter acesso à vela sem ter de contrair uma hipoteca.
Como adverte António Estades, «se isso se tornar uma prática generalizada, a maioria dos residentes que hoje têm um barco não terão onde o guardar. Será uma catástrofe para a navegação de recreio». O mar, que sempre foi considerado um espaço de liberdade, corre o risco de se tornar um luxo: só restará espaço para os barcos dos mais ricos.