O auge dos sistemas automatizados levanta dilemas éticos e sociais sobre o futuro das capacidades fundamentais. A consulta, realizada entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025, reuniu especialistas em tecnologia, ética, sociologia, economia, educação e outras disciplinas da América, Europa, Ásia e outras regiões.
A inteligência artificial (IA) surge como uma força transformadora que, segundo a maioria dos especialistas consultados pelo Imagining the Digital Future Center da Elon University, alterará de forma profunda e multidimensional as capacidades e comportamentos humanos até 2035. O relatório, publicado em abril de 2025 e baseado nas opiniões de 301 especialistas de todo o mundo, antecipa um horizonte de mudanças «profundas» ou mesmo «revolucionárias» na essência do ser humano, com consequências tanto positivas quanto negativas.
Uma mudança de magnitude sem precedentes
61% dos especialistas inquiridos pelo centro da Elon University prevê que a adoção massiva de sistemas de IA provocará transformações «profundas e significativas» ou «fundamentais e revolucionárias» nas capacidades e comportamentos humanos na próxima década. Apenas 8% consideram que o impacto será pouco perceptível ou nulo. Este consenso sobre a magnitude da mudança é acompanhado por uma advertência: a natureza destas transformações será ambivalente, com riscos e oportunidades interligados.
A consulta, realizada entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025, reuniu especialistas em tecnologia, ética, sociologia, economia, educação e outras disciplinas da América, Europa, Ásia e outras regiões. Quase 200 deles contribuíram com ensaios extensos, o que permitiu uma análise qualitativa e quantitativa das expectativas sobre o futuro da humanidade na era da IA.
O relatório salienta que se trata de uma amostra não estatisticamente representativa, mas ilustrativa das tendências e preocupações nos círculos de especialistas.
Capacidades humanas em risco
Entre os aspetos que mais preocupam os especialistas destacam-se a possível erosão de habilidades consideradas essenciais para a vida em sociedade e o desenvolvimento pessoal. De acordo com os dados recolhidos pelo Imagining the Digital Future Center, a maioria antecipa efeitos maioritariamente negativos em áreas como a empatia, a inteligência social e emocional, o pensamento crítico, a confiança nas próprias capacidades, o bem-estar mental, a agência individual, a identidade e o julgamento moral.
Por exemplo, 50% dos especialistas prevêem uma deterioração na capacidade e disposição para pensar profundamente sobre conceitos complexos, enquanto apenas 21% esperam melhorias neste domínio. Metade também antecipa um impacto negativo na inteligência social e emocional, e 48% temem uma diminuição da confiança nas próprias capacidades.
O bem-estar mental, a empatia e a aplicação do julgamento moral parecem igualmente ameaçados, com percentagens semelhantes de respostas pessimistas.
As causas dessa deterioração, de acordo com os depoimentos recolhidos, incluem a crescente dependência de sistemas automatizados, a fragmentação da experiência social, a sobrecarga de estímulos artificiais e a possível atrofia de habilidades por desuso. Nell Watson, presidente da EURAIO e especialista em ética da IA, adverte: “A integração da IA na vida cotidiana transformará profundamente a experiência humana por meio de estímulos artificiais que podem ofuscar as relações autênticas”.
Oportunidades para o desenvolvimento humano
No entanto, o relatório também identifica áreas em que a IA poderia potencializar as capacidades humanas. Uma pluralidade de especialistas considera que a curiosidade, a capacidade de aprendizagem, a tomada de decisões e a criatividade poderiam se beneficiar da colaboração com sistemas inteligentes. 42% prevêem melhorias na curiosidade e na aprendizagem, e 40% na tomada de decisões e na resolução de problemas.
Nesse sentido, alguns especialistas veem na IA uma ferramenta para ampliar o acesso ao conhecimento, personalizar a educação e liberar tempo para atividades criativas ou de maior valor social. Dave Edwards, cofundador do Artificiality Institute, afirma que “a evolução da tecnologia de ferramentas computacionais para parceiros cognitivos marca uma mudança significativa na relação homem-máquina”, abrindo as portas para novas formas de colaboração e criatividade.
Um equilíbrio incerto e opiniões divididas
Metade dos especialistas consultados pela Elon University considera que o impacto global da IA sobre a essência do ser humano será «tanto para o bem como para o mal em igual medida». Apenas 16% acreditam que as mudanças serão maioritariamente positivas, enquanto 23% antecipam um saldo negativo. Apenas 6% esperam que a essência do ser humano permaneça inalterada em 2035.
Essa ambivalência reflete-se nos ensaios recolhidos, onde abundam tanto os avisos sobre riscos sistémicos como as visões esperançosas de uma humanidade capaz de se adaptar e florescer.
Jerry Michalski, analista de tendências tecnológicas, resume a inquietação: «As fronteiras entre realidade e ficção, inteligência humana e artificial, criações humanas e sintéticas serão esbatidas».
Riscos: dependência, fragmentação e manipulação
Entre os perigos mais apontados estão a dependência excessiva da IA, a perda de habilidades e virtudes humanas, a fragmentação social, a manipulação da informação, o aumento da desigualdade e a crise de identidade e propósito. Charles Ess, professor emérito de ética, alerta para a possibilidade de uma «geração de não habilidades» em termos de virtudes essenciais, enquanto Vint Cerf, pioneiro da Internet, adverte que «a facilidade de uso da IA pode levar a uma confiança injustificada e a uma dependência excessiva».
O relatório reúne preocupações sobre a erosão da confiança em valores e normas partilhadas, a proliferação da desinformação e a dificuldade em distinguir entre o real e o artificial. Tracey Follows, consultora em futuros digitais, aponta que «a autenticidade está em vias de extinção; a IA permitirá construir múltiplas identidades digitais, mas também fragmentará o sentido de si mesmo».
Oportunidades: criatividade, colaboração e empatia planetária
Perante estes riscos, parte dos especialistas aposta numa IA orientada para potenciar a criatividade, a colaboração e a empatia à escala global. Vislumbra-se a possibilidade de a tecnologia ajudar a resolver problemas complexos, personalizar a aprendizagem e libertar as pessoas de tarefas rotineiras, permitindo um maior desenvolvimento de competências sociais e criativas.
Rabia Yasmeen, consultora em tendências futuras, imagina um cenário em que «a interação entre humanos e IA resultou numa reavaliação contínua das características humanas fundamentais, enfatizando a adaptabilidade, a empatia e o sentido de propósito». Outros, como David Weinberger, investigador em Harvard, destacam o potencial da IA para descobrir padrões e verdades antes inacessíveis, ampliando a compreensão humana do mundo.
Apelos à regulamentação e à alfabetização digital
Diante da magnitude e complexidade dos desafios, o relatório da Elon University destaca a necessidade de uma regulamentação eficaz, do desenvolvimento ético da IA e da promoção da alfabetização digital. Vários especialistas insistem que o futuro dependerá de decisões coletivas sobre o design, a governança e o uso dessas tecnologias.
Esther Dyson, pioneira da Internet, afirma que “o futuro depende de como usamos a IA e de como preparamos a próxima geração para utilizá-la”, enquanto Amy Zalman, especialista em prospectiva estratégica, apela para “ter a coragem de estabelecer valores humanos no código, nos preceitos éticos, na política e na regulamentação”.
O relatório deixa em aberto a questão central: se os avanços tecnológicos permitirão às pessoas «viver vidas significativas, fazer a diferença e ser genuinamente criativas». Para além da capacidade da IA para resolver problemas ou libertar os humanos de tarefas tediosas, o desafio será preservar e enriquecer aquilo que dá sentido à existência humana num mundo cada vez mais mediado por máquinas inteligentes.
Sobre o estudo: enfoque e limitações
O estudo foi coordenado por Janna Anderson e Lee Rainie como parte da 51ª consulta de especialistas organizada pelo Imagining the Digital Future Center da Universidade de Elon. Embora a amostra não seja representativa do ponto de vista estatístico, ela inclui vozes de várias disciplinas e regiões do mundo. O relatório esclarece que as opiniões expressas são pessoais e não refletem necessariamente as posições oficiais das instituições às quais os participantes pertencem.
Na elaboração do relatório, não foram utilizados modelos de linguagem nem ferramentas de inteligência artificial. Além disso, é feita uma advertência sobre a natureza não científica da amostra. A consulta combinou perguntas quantitativas com ensaios abertos, o que permitiu recolher respostas mais matizadas e diversificadas.