Reciclar o que antes era irrecuperável. Num pequeno laboratório, dois irmãos, Ra e Karim Medak, doutores em química, decidiram enfrentar um problema que continua a afogar o planeta: a reciclagem de têxteis misturados com plásticos como o poliéster. O seu objetivo não era pequeno: criar um processo que não só separasse os materiais difíceis de recuperar, mas que também o fizesse de forma sustentável e eficiente.
Assim nasceu a Recyc’Elit, uma startup francesa fundada em 2019 que conseguiu desenvolver um método pioneiro para decompor têxteis complexos em condições suaves: baixa temperatura, pressão atmosférica e alto rendimento. Uma raridade num setor onde os métodos tradicionais geralmente requerem altas temperaturas e processos agressivos, com grande impacto energético e limitações quanto ao tipo de resíduo que podem tratar.
O que há de especial neste processo?
O cerne da inovação reside num processo químico de solvolise de nova geração, que permite decompor tecidos compostos principalmente por poliéster, mesmo quando misturados com outros materiais como elastano, algodão ou poliamida. A chave está na sua versatilidade: aceita resíduos têxteis que antes eram enviados diretamente para aterros ou incineradoras por serem impossíveis de reciclar.
Ao contrário de outras tecnologias, não requer a separação prévia dos materiais, o que reduz custos e simplifica a cadeia de reciclagem. Além disso, o processo não só recupera os monómeros do poliéster (como o DMT e o MEG), mas também permite recuperar materiais secundários, como o elastano, com um alto grau de pureza.
Isto significa que a reciclagem não se limita a extrair uma fração útil: tudo é reutilizado, sem resíduos perigosos e com possibilidades reais de reintroduzir cada componente em novas cadeias de valor.
De protótipos à produção: uma escalada controlada
Nas suas fases iniciais, a Recyc’Elit operava com um piloto de apenas 10 litros de capacidade, equivalente a cerca de 1 kg de têxtil por lote. Mas em menos de um ano, com o apoio de parceiros estratégicos como a Ranger Green Tech, eles escalaram seu sistema para uma planta capaz de processar 2 toneladas de resíduos têxteis por ano. Embora pareça modesto, esse avanço representa um marco: é a prova de que o modelo é escalável, eficiente e replicável.
Atualmente, já conseguiram produzir várias centenas de quilogramas de monómeros, que já foram repolimerizados para fabricar novos fios têxteis. Ou seja, roupas novas a partir de roupas velhas… sem comprometer a qualidade ou a integridade do material.
E vão além disso. A empresa já está a trabalhar na construção de um demonstrador pré-industrial, com capacidade muito maior, e estabeleceu como meta lançar uma planta piloto industrial até ao final de 2028. Será um ponto de inflexão se conseguirem manter a eficiência energética e a pureza do produto em grande escala.
Um desafio de engenharia… e de visão
Como em todo projeto pioneiro, o caminho não está livre de obstáculos. A gestão da escalabilidade tecnológica é um dos maiores desafios: adaptar a química de laboratório ao ambiente industrial requer planeamento constante, múltiplos cenários e capacidade de adaptação.
O interessante aqui é que, apesar da complexidade, a equipa não se limita a desenvolver tecnologia: procura transformar todo um modelo produtivo. Não só reciclam têxteis, como demonstram que é possível conceber processos circulares desde o início, com critérios ambientais como eixo central, e não como um aditamento final.
Potencial
O que a Recyc’Elit propõe vai além da reciclagem. Este tipo de tecnologias pode mudar a lógica do consumo têxtil, um setor que gera mais de 92 milhões de toneladas de resíduos por ano em todo o mundo.
Algumas chaves sobre o seu impacto futuro:
- Redução drástica dos resíduos têxteis que hoje acabam em aterros ou são incinerados.
- Menor dependência de matérias-primas virgens, como o petróleo, para produzir poliéster novo.
- Economia circular real na indústria da moda, para além do greenwashing.
- Novas oportunidades de emprego verde em setores tecnológicos e industriais.
- Possibilidade de replicar o modelo em regiões com altos níveis de poluição têxtil, como o Sudeste Asiático ou a América Latina.
- Tecnologia alinhada com as estratégias climáticas da União Europeia, que busca que todos os produtos têxteis no mercado sejam circulares, duráveis e recicláveis até 2030.
Numa altura em que a indústria da moda rápida está sob escrutínio, soluções como esta mostram um caminho concreto e mensurável para reduzir a pegada ecológica do setor. Não se trata de imaginar um futuro sustentável: trata-se de construí-lo com ciência, vontade e ação.